22 DE JANEIRO DE 2025
Acervo doado pela filha do ex-vereador e prefeito reúne itens históricos e pode ser visualizado pela internet, no endereço documentacao.camarapiracicaba.sp.gov.br
Giovanna, Lidice e Bruno, diante do acervo doado à Câmara
A trajetória política de Francisco Salgot Castillon e o legado que ele deixou à cidade pela qual se elegeu vereador, prefeito e deputado estadual passam a ter novos elementos para futuras leituras históricas com a disponibilização, no site da Câmara Municipal de Piracicaba, de seu acervo pessoal, composto de centenas de fotos e documentos.
O vasto material, com mais de 540 itens, entra no ar pelo endereço virtual documentacao.camarapiracicaba.sp.gov.br/index.php/acervo-francisco-salgot-castillon a partir desta quinta-feira (23), quando se completam 23 anos da morte de Salgot. O acervo foi transferido à Câmara em junho de 2024, quando a filha do ex-prefeito, Lidice Salgot, assinou com a Casa o termo de doação.
Desde então, uma série de fotos em preto e branco, ofícios, diplomas, cartas, cartazes e recortes de jornal, entre outras raridades, foram "desbravadas" pela equipe do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, num trabalho minucioso que prepara e cataloga o material antes de ele ser digitalizado e vir a público.
"Fomos procurados pela Lidice no ano passado e descobrimos que ela estava em posse de um acervo riquíssimo, tanto para a história política quanto para a história da própria cidade, de uma época específica. Assinamos o termo, recebemos todo esse material no Setor e, desde então, estamos trabalhando com ele, lendo e conhecendo um por um, digitalizando e disponibilizando no acervo online da Câmara. A partir de agora, os mais de 500 itens que contam a história do Salgot vão estar disponíveis a todos", destaca a chefe do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, Giovanna Fenili Calabria.
Tal como todo item que se soma ao "quebra-cabeças sem fim" que é contar o passado da cidade, as informações subtraídas do material doado à Câmara ajudam a contextualizar dados de sua época, como explica Bruno Didoné de Oliveira, servidor do Setor.
"A gente se depara com diversos nomes e expressões nas atas da Câmara e esses documentos reforçam esses fatos, ligando uma coisa com outra. E este é um período riquíssimo da história da cidade: desde quando o Salgot assume como vereador, em 1952, até 1969, quando ele é cassado enquanto prefeito. São 17 anos de história política que esses documentos provenientes da Lidice nos ajudam a contar, além de recortes de jornais e fotos do período pós-político do Salgot, em que continuou com sua profissão de engenheiro, participando ativamente do debate público."
TRAJETÓRIA - Salgot foi eleito para o primeiro mandato como vereador para o período de 1952 a 1955. Até pouco tempo antes, ele resistia à ideia de ingressar na política, como confidenciou em uma carta de 1947 à futura esposa Ladice, que morava no Rio de Janeiro —onde ele se formou engenheiro civil— e com quem se casaria em 1948.
"Ele era uma pessoa política desde sempre, atuava muito com os colegas na universidade, já tinha uma veia política na época estudantil. Tinha simpatia com a UDN [União Democrática Nacional], pois não gostava da atitude de ditador que Getúlio Vargas tinha. Depois que veio para Piracicaba, passou a se envolver com políticos e foi incentivado a ser candidato. Foi eleito vereador numa época em que não tinha nem salário", rememora Lidice.
Reeleito para o segundo mandato parlamentar, entre 1956 e 1959, Salgot na sequência foi lançado candidato a prefeito —e venceu, para governar a cidade entre 1960 e 1962, sendo o último vereador a conseguir "emendar" o término da passagem pela Câmara com a posse como chefe do Executivo.
Salgot voltaria a assumir como prefeito em 1969, numa passagem abreviada por sua cassação, em outubro do mesmo ano, e depois prisão, em 1970, pela ditadura militar da época —o segundo mandato, diferentemente do primeiro, coincidiu já com o período em que vigorou o regime.
Por isso, mesmo a posse, pela segunda vez, como chefe do Executivo local já foi conturbada, em razão da disputa entre grupos políticos da cidade, com a acusação de proximidade de Salgot com sindicatos tendo de ser rebatida por expoentes da sociedade piracicabana que se colocaram ao lado do engenheiro.
Duas cartas datadas de 1969 que compõem o acervo doado à Câmara mostram que foi necessário dialogar com as autoridades militares para garantir que Salgot assumisse como prefeito.
"Como industrial em Piracicaba há 50 anos", Mário Dedini escreveu a uma autoridade de alta patente do Exército assegurando que teve Salgot "sempre no melhor conceito, quer como cidadão, quer como administrador", e que, em "todas as vezes que se fizeram necessárias, agiu no sentido do bom entendimento entre as empresas industriais e os operários".
Já o então bispo dom Aníger de Maria Mellilo, em carta datilografada ao marechal Arthur da Costa e Silva, presidente do país em 1969, alertou que, uma vez "informado dos passos primeiros para uma possível cassação do deputado e prefeito eleito de Piracicaba", "o grande risco é a injustiça, porque, deflagrada a Operação Limpeza, poderão ser sacrificados muitos justos, por causa das informações de homens radicalizados ou apaixonados pelas lutas partidárias". E acrescentou que Salgot era "homem não dominado por ideologias extremistas".
PRISÃO - Apesar dos esforços que garantiram que Salgot tomasse posse como prefeito, meses depois ele teve o mandato retirado. "Em 1969, no primeiro ano da volta dele à Prefeitura, houve um movimento nacional por causa da morte do Marighella", relembra Lidice, em menção ao guerrilheiro baiano, morto em uma emboscada policial em 4 de novembro de 1969, que era tido como um dos líderes do enfrentamento ao regime instalado em 1964.
"Meu pai foi cassado; o motivo que falaram era de que havia problema de falcatruas, mas não tinha nada. E na época os militares resolveram prender os políticos cassados porque achavam que seriam eles que liderariam um movimento a favor do Marighella. Se tinha alguma movimentação que os militares consideravam como perigosa, de esquerda, eles prendiam", conta Lidice.
Salgot ficou preso por uma semana, em Campinas (SP), como somente depois a família descobriria. "Essa semana sem o meu pai foi muito estranha. Eu tinha saído com amigos, e meu pai e minha mãe ficaram em casa. Aí, quando cheguei, estava tudo quietinho em casa, apagado. Pensei: 'Estão dormindo'. Aí deitei e, de manhã, acordei com minha mãe falando ao telefone: 'O Francisco foi preso, eu preciso de ajuda'. Levantei e perguntei: 'Mamãe, mas como isso?'. Ela falou: 'Ontem à noite chegaram aqui, levaram o seu pai para a delegacia. Disseram que precisavam prender e o levaram'", relembra a artista plástica, que na época era uma estudante de 19 anos, que se preparava para cursar publicidade, e hoje está com 74, aposentada.
"Minha mãe não sabia onde meu pai estava. Ela entrou em contato com políticos, amigos, deputados que poderiam ajudar, e eles foram pedindo socorro, aí descobriram aonde ele tinha sido levado. Teve todo um grupo de pessoas de Piracicaba que foi pedir para tirar o meu pai da prisão, dizendo que não tinha nada a ver", lembra a filha de Salgot, que não foi torturado no período em que esteve detido.
MARCAS - A trajetória de Salgot na política não foi somente intensa —foram dois mandatos como vereador, dois como prefeito e dois como deputado estadual, entre 1963 e 1968—, como também extensa: a prisão, em 1970, interrompeu a sequência de 18 anos em cargos eletivos, levando-o a abandonar a carreira e retomar a atuação como engenheiro —os direitos políticos só seriam recuperados em 1979.
Lidice, que nasceu em 1950, recorda o tempo em que o pai foi prefeito e a família morava no edifício Santo Antônio, na rua Boa Morte. "Era uma vida normal, não tínhamos nada de diferente. Meu pai não queria que ficássemos indo à Prefeitura, ele separava bem as coisas", diz a filha, destacando a identificação do político com a terra que o acolheu.
Salgot nasceu em Centellas, próximo a Barcelona, na Espanha, em 2 de janeiro de 1921. Com a morte do pai, o garoto, que tinha 10 anos, veio para o Brasil com parte da família, entre os quais estava Martinho Salgot, religioso depois intitulado monsenhor —os documentos do processo pelo qual Francisco Salgot obteve a nacionalidade brasileira, na década de 1940, também fazem parte do acervo doado à Câmara.
"Meu pai era um espanhol que virou um piracicabano que amava a cidade. O Parque do Mirante foi ele que fez, em 1962. É uma coisa marcante, a cara dele. E agora felizmente o Parque do Mirante leva o nome da minha mãe", orgulha-se Lidice, referindo-se à lei municipal 9.814/2022, proposta pela vereadora Silvia Morales (PV) e aprovada pela Câmara. Outro símbolo de Piracicaba, o estádio Barão da Serra Negra também é obra de Salgot, concluída no governo de Luciano Guidotti.
"Apesar de ser da UDN, que era um partido extremamente conservador e das classes mais altas, meu pai se preocupava muito com o social. E, como pessoa, era um homem extremamente bom, que, apesar de espanhol, não era bravo; pelo contrário, era muito carinhoso com a gente", acrescenta a filha.
O acervo agora disponibilizado na internet também traz os diplomas emitidos pelo Tribunal Regional Eleitoral dos pleitos disputados por Salgot, atestando, por exemplo, os 198 votos obtidos na primeira eleição como vereador e os 472 da segunda. "O pessoal que era contra falava que ele era um político populista, que hoje em dia tem um sentido ruim, mas meu pai era uma pessoa extremamente popular", diz a artista plástica.
Como Lidice é a última descendente da família Salgot Castillon, ela, desde a morte do pai, em 2002, discutia com a mãe a destinação do acervo do ex-vereador, prefeito e deputado estadual por Piracicaba. "Quem encerra a família Salgot sou eu. Tínhamos pensado em doar à Prefeitura para que fosse feito um acervo no Museu da Água, que tem o nome do meu pai, pois lá não há nenhum histórico dele", diz Lidice, explicando que a proposta não foi acolhida por nenhum prefeito desde então.
A Câmara, estruturada com seu Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, respondeu "sim" quando foi procurada pela artista plástica. "É um material histórico, que fez parte da vida do meu pai e da cidade, para toda a população conhecer. Fico muito feliz de a Câmara o ter aceito", conclui a filha de Salgot.