PIRACICABA, QUARTA-FEIRA, 30 DE OUTUBRO DE 2024
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25 DE OUTUBRO DE 2024

Caso Bonetti: os ritos do processo criminal no Século 19


Série ‘Achados do Arquivo’ apresenta, a partir de um caso de 26 de novembro de 1895, como funcionava o tribunal do júri há quase 130 anos



EM PIRACICABA (SP)  

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Dia 26 de novembro de 1895, apresenta-se na delegacia de polícia o italiano Marco Bonetti, dizendo ter assassinado um indivíduo de nome Felisbino Queiroz. É assim que se inicia a história de um assassinado ocorrido na Piracicaba do Século 19 e os autos de um processo que espelham duas normativas em vigor na época: O Código de Processo Criminal (1832) e o Código Penal (1890).

A matéria desta semana da série 'Achados do Arquivo' retrata processo que faz parte dos documentos doados pela família de Jair Toledo Veiga e está disponível, na íntegra, no Acervo Histórico da Câmara Municipal de Piracicaba.

As declarações feitas por Bonetti na sala de audiências da Delegacia de Polícia de Piracicaba, juntamente com o delegado João Baldomiro de Campos, trazem mais informações sobre ele e sobre o ocorrido. Consta nos autos que Marco Bonetti, de 54 anos, casado, empregado no cortume (tratamento de couro) de Bento Vollet Junior e natural da Itália (nascido na província de Treviso), havia se apresentado à autoridade policial para “ser recolhido a cadeira pública”, por ter assassinado Felisbino Queiroz, por este tentar invadir sua casa, no bairro dos Alemães, em Piracicaba.

O exame de corpo de delito então é realizado, na estrada do Monte Alegre, pouco além do Hospital de Isolamento, onde encontrava-se o corpo do assassinado. Nos autos, os peritos José Marcelino de Moraes Barros e Adolpho Bossallo declararam que encontraram um ferimento, feito por arma de fogo (espingarda) na região cárdia (peitoral esquerdo), que produziu morte quase imediata. Que o tiro teria sido disparado de distância aproximada de 3 metros, que a causa imediata da morte foi hemorragia.

Na Assentada (sessão do tribunal para a inquirição das testemunhas), lavrada em 28 de novembro de 1895, conhece-se as testemunhas do caso e seus depoimentos na inquirição realizada. As testemunhas são, a priori, todas parentes de Marco Bonetti: Thereza Bonetti (esposa), Rosa Bonetti (filha) e Francisco Previtali (genro).

Segundo a esposa, Thereza Bonetti, na madrugada de 26 de novembro de 1895, Felisbino bateu na porta de sua casa, forçosamente tentando entrar. Seu marido, Marco Benetti, dissera para ele ir embora, pois não abria a porta naquela hora. Felisbino se dirigiu e arrombou a janela do quarto onde dormia sua filha, Rosa Bonetti, e tentou saltar para dentro. Que seu marido deferiu um tiro sobre o mesmo Felisbino, que veio a falecer momentos depois. Pelo depoimento de Thereza sabe-se também que Felisbino trabalhava com Marco Bonetti e que ela o reconheceu pela voz, enquanto este insultava o seu marido dizendo: “Puta que o pariu, eu não conheço italiano de merda”. Segundo ela, Felisbino era um homem desordeiro e provocador.

O depoimento de Rosa Bonetti muito se assemelha o de sua mãe (Thereza), até mesmos nos detalhes. Ela narra que o tiro foi disparado quando Felisbino já estava com metade do corpo para dentro do quarto e que, após o disparo, este tentou fugir pela estrada, mas faleceu poucos momentos depois.

Já Francisco Previtali declarou que foi acordado pelo estampido de um tiro a pouca distância, que encontrou a janela do quarto onde dormia sua mulher completamente aberta, e que não conseguiu fecha-la por estar com a dobradiça quebrada, e que pela janela avistou o corpo no chão, a duas ou três braças além da referida janela. Francisco ainda conta que foi convidado por seu sogro Marco Bonetti, a ir na casa de Bento Vollet Junior (patrão) para consulta-lo sobre o que devia ser feito.

Com o corpo de delito e inquirição das testemunhas feitos, em 4 de dezembro de 1895 é expedido e autuado o “Sumário de Culpa”, com a denúncia despachada que enquadrava Marco Bonetti no crime capitulado no art. 294 §2º do Código Penal. O citado artigo tem a seguinte redação:

Art. 294. Matar alguém:
§1º Si o crime for perpetrado com qualquer das circunstancias agravantes mencionadas nos §§ 2º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º e 19º do art. 39 e § 2º do art. 41:
Pena - de prisão celular por doze a trinta anos.
§ 2º Si o homicídio não tiver sido agravado pelas referidas circunstancias:
Pena - de prisão celular por seis a vinte e quatro anos

São muitas as circunstâncias agravantes, como “ter o delinquente cometido o crime por meio de veneno, substancias anestésicas, incêndio, asfixia ou inundação”; “Ter precedido ao crime a emboscada, por haver o delinquente esperado o ofendido em um ou diversos lugares” e “Quando a dor física for aumentada por atos de crueldade”, mas nenhuma delas enquadrava-se no caso de Marco Bonetti.

Na mesma data, um mandado de prisão, expedido pelo Juiz de Direito da Comarca de Piracicaba, Rafael Marques Coutinho, que determinava ao carcereiro que “conserve em prisão preventiva o preso Marco Bonetti que se acha denunciado pelo Doutor Promotor Público da Comarca como incurso nas penas do artigo 294 §2º do Código Penal”.

Na sequência do processo, as testemunhas são reinquiridas e também novas testemunhas são apresentadas, como Bento Vollet Junior o proprietário do cortume onde trabalhavam tanto o denunciado, como a vítima. No depoimento, Bento Vollet Junior informou que na madrugada do dia 26 de novembro de 1895 apresentou-se em sua casa o denunciado Marco Bonetti, relatando o que acabara de ocorrer. Que ele depoente aconselhou que Bonetti fosse a cidade apresentar-se e dar parte à polícia desta ocorrência. Vollet relatou que ouviu o relato dos acontecimentos de Rosa Bonetti. Disse conhecer o denunciado e saber que ele é “um homem de bons costumes, muito trabalhado e sossegado e que isto pode afirmar, porque o mesmo denunciado é seu empregado”. Sobre a vítima, Felisbino Queiroz, disse que o conhecia há muitos anos, e que “pode afirmar que era um homem trabalhador e comportado, mas que embriagava-se algumas vezes em cujas ocasiões tornava- se intolerável, por ficar provocador e insolente”.

Um depoimento parecido foi dado pelo seu pai, Bento Vollet, que qualificou Marco Bonneti como “homem honesto, trabalhador, bom pai de família e sossegado”, já Felisbino Queiroz como: “homem trabalhador e fiel, mas que costumava a embriagar-se e que nessas ocasiões tornava-se malcriado e insolente, não respeitando ninguém, nem mesmo aos seus patrões”.

Um alemão de nome Alberto Wey, dono de um armazém, também prestou depoimento, segundo ele, na noite do dia 26 de novembro de 1895, estavam no armazém de sua propriedade muitas pessoas, incluindo o Felisbino Queiroz, que a meia noite fechou o dito armazém e ouviu o italiano Cezar Marson convidar Felisbino Queiroz para dormir em sua casa, e este recusou, dizendo que tinha que ir à casa do denunciado, Marco Bonetti. Que só soube do ocorrida na manhã seguinte. Disse conhecer ambos os envolvidos (assassinado e denunciado), e sobre eles informa que Marco Bonetti “é um homem trabalhador e sossegado”; já Felisbino “dava-se ao vício da embriaguez em cujas ocasiões provocador e desordeiro”. Relatou também que, na noite do crime, Felisbino saiu de seu armazém por volta da meia-noite, um pouco esquentado, mas não estava embriagado.

Eis que, no dia 23 de dezembro de 1895, na sala de audiências, na presença do Juiz de Direito da Comarca, Rafael Marques Coutinho, ocorre o interrogatório do réu Marco Bonetti, e neste tem-se o relato mais detalhado contado pelo próprio denunciado. Segundo consta no documento, o réu, que estava “livre de ferros e sem constrangimento algum”, declarou que na noite do fato narrado na denúncia, estava em casa com sua família, acordado e enfermo, que bateram à porta de sua casa, pedindo para entrar, mas ele, interrogado, recusou, por estar doente e por ser hora imprópria, que ele reconheceu quem batia a porta como “um caboclo conhecido por Bino, que também era empregado no cortume de Bento Vollet Junior”.

Segundo o interrogado, o seguinte se sucedeu: “(...) que Bino vendo que não se lhe abria a porta tentou força-la, mas como esta não cedesse dirigiu-se para uma janela que dá para o quarto de sua filha Rosa, e proferindo palavras grosseiras e em desafio, arrombou a janela, fazendo saltar a tranca que fechava; que sua filha Rosa gritando, ele interrogado levantou-se e pegando em uma espingarda carregada que se achava em um canto, dirigiu-se para o quarto da mesma sua filha e aí viu a janela aberta, o caboclo Bino montado no batente da mesma e já em pontos de saltar para dentro do quarto; que ele interrogado, que tinha na mão a espingarda, disse a Bino que saísse porque ao contrário arrepender-se-ia ao que Bino respondeu-lhe com insultos e provocações que ele interrogado vendo-se assim desatendido desfechou um tiro em Bino, que foi cair em cinco metros de distância da janela; que ele interrogado saindo para fora da sua casa viu que Bino estava morto (...)”.

O libelo crime acusatório foi expedido em 5 de fevereiro de 1896, no documento o promotor público, Cherubim Ferraz de Andrade, resume o fato e pede a condenação do réu, Marco Bonetti, no grau médio do art. 294 §2º do Código Penal. Ele requer também que tenham lugar as diligências legais, especialmente que sejam notificadas, sob as penas da lei, as testemunhas arroladas, para comparecerem a sessão do júri.

A sessão do júri ocorre em 3 de março de 1896 e com ela uma infinidade de documentos é anexada aos autos, principalmente diferentes tipologias de termos como de comparecimento e de juramento.

Mas, talvez, o mais interessante destes seja a ata da sessão ordinária do júri, que permite vislumbrar como eram os trabalhos do tribunal no período, tanto suas semelhanças com a atualidade, quanto a execução do Código do Processo Criminal.

Promulgado em 29 de novembro de 1832, o Código de Processo Criminal, foi um marco da história brasileira, pois desvinculou o Brasil, agora independente, de normativas oriundas de seu antigo colonizador (Portugal) e também trouxe questões relevantes, como a exigência de um julgamento público e a garantia de defesa para o acusado, além de iniciar a consolidação e autonomia do Poder Judiciário. Tal código, apesar de passar por algumas alterações, como a reforma de 1841, permaneceu em vigor até a reforma judiciário, que ocorreu em 1939, ou seja, mais de um século depois.

Retomando ao julgamento em questão, a ata regista os acontecimentos, que tiveram lugar na sala das sessões do júri, na cidade de Piracicaba as 10h da manhã. Consta que a sessão teve inicio, a porta abertas, que começou com o toque da “campainha oficial”, feita por Antônio Francisco Teixeira, oficial, servindo como porteiro.

Art. 59. Todas as audiências, e sessões dos Tribunais, e Jurados, serão publicas a portas abertas, com assistência de um Escrivão, de um Oficial de Justiça, ou Contínuo, em dia, e hora certa invariável, anunciado o seu principio pelo toque de campainha

Tem-se início assim a sessão propriamente dita, que se principia com a escolha dos jurados, feita na presença do réu Marco Bonetti, acompanhado de seu advogado, Nicolau Tolentino Rodrigues Barrevios. Neste são colocadas, em uma urna, cédulas com os nomes dos nomeados e o sorteio dos 12 jurados que iriam de fato compor o júri de sentença é feito baseando-se nos artigos 275 e 277 do Código do Processo Criminal.

Art. 275. Entrando-se no sorteamento para a formação do 2º Conselho, e à medida que o nome de cada um Juiz de Fato, for sendo lido pelo Juiz de Direito, farão o acusado, e o acusador suas “recusações” sem as motivarem. O acusado poderá recusar doze, e o acusador, depois dele, outros tantos tirados a sorte.

Art. 277. São inibidos de servir no mesmo Conselho ascendentes, e seus descendentes, sogro, e genro, irmãos, e cunhados, durante o “cunhadio”. Destes o primeiro que tiver saído a sorte, é que deve ficar.

Consta que foram recusados alguns jurados sorteados, sendo três pela defesa e dois por parte da acusação. Consta também que ficaram inibidos de servires dois dos jurados sorteados, por terem parentesco com um dos jurados que já havia sido sorteado e aceito para compor o conselho de sentença.

Após o sorteio e Juiz de Direito deferiu o juramento aos doze juízes de fato, com o seguinte teor: - “Juro pronunciam-me bem e sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza e verdade, só tendo diante dos olhos Deus e a Lei e proferir o meu voto, segundo a minha consciência”.

Na sequência tem-se o interrogatório do réu, Marco Bonetti, e a leitura, por parte do escrivão, de todo o processo de formação de culpa. Sendo passada a palavra ao promotor Público, Cherubim Ferraz de Andrade, que demonstrou os artigos de lei, em que, pelas circunstâncias, entendia estar o réu incluso e as razões da culpabilidade deste.

Foi chamada a testemunha Bento Vollet Junior, que prestou depoimento e foi inquirido pelo Promotor Público e pelo defensor do réu. As demais testemunhas foram dispensadas, com concordâncias de todos. Dando sequência sessão do júri, foi dada a palavra ao defensor do réu que: - “mostrando leis, provas, fatos e razões que sustentavam a inocência do mesmo réu, e terminou pedindo a sua absolvição”. 

Infelizmente, nem a ata e nem nenhum dos outros documentos que compõe o processo, descrevem ou detalham as falas feitas pelas partes, nem o teor dos debates e das argumentações. Sendo assim, não se sabe o que foi especificamente alegado pela acusação e nem pela defesa, apenas que um pedia sua condenação e outro sua absolvição.

Após o Promotor Público desistir da réplica, o Juiz de Direito consultou o júri se este estava “suficientemente esclarecido para julgar a causa”, com a resposta afirmativa, o citado Juiz deu por encerrado os debates e entregou as questões de fato propostas ao júri de sentença.

Art. 269. Achando-se a causa no estado de ser decidida por parecer aos Jurados, que nada mais resta a examinar o Juiz de Direito, resumindo com a maior clareza possível toda a matéria da acusação, e da defesa, e as razões expendidas pró, e contra, proporá por escrito ao Conselho as questões.

O Juiz em questão formulou três quesitos a serem respondidos, sendo estes:

“1º. O réu Marco Bonetti, na madrugada de 26 do mês de novembro do ano passado, no bairro dos Alemães, nesta cidade, desfechou sobre Felisbino Queiroz um tiro de espingarda que o matou instantaneamente?
2º. O júri reconhece que o réu cometeu o crime repelindo quem tentava entrar a noite em sua residência, fora dos casos permitidas pela lei?
3º. Existem circunstancias atenuantes em favor do réu: Quais são?”

Os doze juízes de fato, que formavam o Conselho de Sentença, dirigiram-se a chamada Sala Secreta, sendo acompanhados pelos oficias de justiça Antônio Francisco Teixeira e Joaquim Rodrigues de Castro, que se postaram a porta por ordem do Juiz de Direito.

Art. 333. A conferencia do Júri, em sua sala particular, é secreta. Dois Oficiais de Justiça por ordem do Juiz de Direito serão postados a porta dela, para não consentirem, que saia algum Jurado, ou que alguém entre, ou se comunique por qualquer maneira com os Jurados, pena de serem punidos como desobedientes.

Retornando o júri a sala pública, com certidão da incomunicabilidade deste dada pelos oficias de justiça, foram lidas as respostas dadas pelos juízes de direito:

“Ao 1º quesito. Sim, por unanimidade de votos.
O réu Marco Bonetti, na madrugada de 26 do mês de novembro do ano passado, no bairro dos Alemães, nesta cidade, desfechou sobre Felisbino Queiroz um tiro de espingarda que o matou instantaneamente.
Ao 2º quesito. Sim, por unanimidade de votos.
O júri reconhece que o réu cometeu o crime repelindo quem tentava entrar a noite em sua residência, fora dos casos permitidas pela lei.
Ao 3º quesito, o Júri deixa de responder por julgá-lo prejudicado.”

Chega-se assim à sentença, expedida pelo Juiz de Direito da Comarca e presidente do tribunal, Rafael Marques Coutinho, na qual, em conformidade com a decisão do júri, absolve o réu Marco Bonetti, mandando dar baixa de culpa a seu favor e expedir seu alvará de soltura.

Novamente e, mais uma vez, infelizmente, nem a ata e nem nenhum dos outros documentos que compõe o processo, descrevem, detalham ou explicam a decisão, deixando apenas a suposição que o crime cometido por Bonetti tenha sido considerado “justificável”, como fruto de uma legítima defesa plausível.

Os autos do processo deixam, sem dúvida, questões em abertas e informações incompletas, pois não permitem que se sabia de fato alguns por menores do ocorrido. Não se tem a versão de Felisbino Queiroz, pois nenhuma testemunha se apresentou em seu favor e detalhes da acusação, defesa e debates perderam-se nas formas resumidas dos registros. Mas é inegável que estes documentos permitem visualizar, de forma simbólica, um tribunal do júri do século XIX.



Texto:  Giovanna Felini Calabria
Revisão:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Pesquisa:  Giovanna Felini Calabria


Achados do Arquivo Documentação Institucional

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