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12 DE JUNHO DE 2019

Trabalho infantil expõe política higienista e invisibilidade social


Em seminário na Câmara, historiador Sidney Aguilar Filho apontou as raízes da ineficácia do tratamento às crianças e adolescentes no País



EM PIRACICABA (SP)  

Foto: Rafael Henrique da Silva (1 de 3) Salvar imagem em alta resolução

Salão Nobre Helly de Campos Melges ficou lotado na tarde desta quarta-feira (12)

Salão Nobre Helly de Campos Melges ficou lotado na tarde desta quarta-feira (12)
Foto: Rafael Henrique da Silva (2 de 3) Salvar imagem em alta resolução

Sidney Aguilar Filho, historiador, fez relato contundente sobre a origem dos problemas nacionais na política de cuidado das crianças e adolescentes

Sidney Aguilar Filho, historiador, fez relato contundente sobre a origem dos problemas nacionais na política de cuidado das crianças e adolescentes
Foto: Rafael Henrique da Silva (3 de 3) Salvar imagem em alta resolução

Eliete Nunes, secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, e o palestrante Sidney Aguilar Filho

Eliete Nunes, secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, e o palestrante Sidney Aguilar Filho
Foto: Rafael Henrique da Silva Salvar imagem em alta resolução

Salão Nobre Helly de Campos Melges ficou lotado na tarde desta quarta-feira (12)






“Quando alguém me fala em redução da maioridade para 16 ou 14 anos, sempre pergunto: você está pronto para ser governado por alguém de 14 ou 16 anos?”. O questionamento do historiador Sidney Aguilar Filho, no seminário “A erradicação do trabalho infantil como questão essencial aos direitos humanos”, na tarde desta quarta-feira (12), na Câmara de Vereadores de Piracicaba, parte do episódio “Golpe da Maioridade”, o qual tornou Dom Pedro II, aos 14 anos, Imperador do Brasil, em 1840.

“Quer defender cadeia e trabalho para cada vez mais jovens, então, democraticamente falando, se é possível ser preso e trabalhar, porque não dirigir e governar a Nação aos 14 e 16 anos”, complementa Aguilar, ao detalhar que, na história do País, a redução da maioridade, e o próprio “cuidado” com as crianças e adolescentes, partiram de interesses políticos e econômicos e não das necessidades dos seres humanos de pouca idade. 

Em um relato contundente sobre alguns dos principais momentos de discussões nacionais em torno das crianças e dos adolescentes, Aguilar lembrou da Lei do Ventre Livre, de 1871, que, sob o pretexto de tornar alforriados os nascidos de escravos, criou a massa do que se define, desde então, e preconceituosamente, de “menores abandonados”. 

“A primeira parte da lei diz que nascidos de escravos estão livres, porém, nas outras duas páginas da mesma legislação está definido o que fazer com estas crianças e as opções são quase inacreditáveis”, acrescenta. 

Aguilar relata que a mesma Lei do Ventre Livre colocava como alternativas a criança ficar com a mãe – “o que significativa ficar com o proprietário da mãe, o qual receberia pagamento do Estado e, a partir de 9 anos, poderia explorar o trabalho da criança até 21 anos, sob a alegação que a criança não lhe pertencia, não tinha nenhuma responsabilidade em alimentá-lo, vesti-lo e em dar moradia”, exemplifica o historiador. 

A outra opção, no caso da Lei do Ventre Livre, era a criança ser entregue a um tutor, o qual teria o direito ao pagamento e, da mesma forma, poderia, a partir dos 9 até os 21 anos, explorar pelo trabalho. O mesmo aconteceria na terceira opção, mas se fosse entregue a um orfanato. 

“Na prática, estamos falando de continuidade da escravidão”, analisa. 

A contradição se dava por conta do interesse dos ultraliberais do Partido Conservador, que, ao mesmo tempo em que eram contra a escravidão, por entender que todo ser humano é livre, defendiam a propriedade privada como valor máximo. “A ideia é que a escravidão terminaria quando o último escravo morresse”, definiu o historiador. 

Aguilar pontua que, nesta conjuntura, havia uma tragédia envolvida. “Se fosse você a mãe, ficaria com a criança? Deixaria ela crescer em um ambiente escravocrata? Permitiria a entrega a um tutor e deixaria ela ser escravizada? Seria entregue a um orfanato, faria o quê?”, questionou. 

Durante o trabalho de pesquisa, o historiador encontrou uma caixa com diversos bilhetes em que diziam respeito ao abandono na roda dos expostos (mecanismo utilizado para deixar recém-nascidos que ficavam ao cuidado de instituições de caridade). 

“Assim, a criança não entrava como beneficiária do ‘ventre livre’, como tutelada, o que implica em dizer que o orfanato não teria direito ao pagamento do Estado, assim criou-se uma política de abandono em amor à liberdade e aos filhos. É uma aberração!”, detalha. “As rodas dos expostos começaram a ser fechadas e as crianças passaram a ser deixadas em logradouros públicos, em portas de igreja, enfim, e neste momento nasce uma instituição brasileira: o menino ou menina de rua”, conclui. 

A ineficácia social da Lei do Ventre Livre, no Século XIX, criou uma situação que, na Primeira República, foi combatida com política higienista, especialmente na promulgação do Código Mello Mattos, em 1927, quando a maioridade foi, então, definida aos 18 anos, porém, permitia o encarceramento de crianças e adolescentes a partir dos 12 anos por crimes de vadiagem, libertinagem, mendicância, gatunice e entorpecência. 

“Vamos pensar um pouco sobre isso. Vadiagem significa que, se estiver sentado na praça, pode ser preso; mendicância, se pedir esmola, cadeia; gatunice, se for pego furtando; entorpecência significa uso de maconha, cola de sapateiro e cachaça, em uma época que nenhum entorpecente era proibido, o adulto podia cheira cocaína, mas o que mais me espanta é o crime de libertinagem: se uma menina de 12 anos fosse pega em atitudes libidinosas com um homem adulto, ela iria presa; ele, não”, analisa. 

Essa legislação, depois conhecida como Código do Menor, perdurou ao longo do Século XX, incorporando elementos como a Febem e a possibilidade, além do encarceramento de crianças e adolescentes, do trabalho infantil. Somente foi extinta em 1988, com a promulgação da Constituição e, em seguida, com a regulamentação a partir do ECA. 

As raízes históricas de políticas equivocadas para o cuidado da criança e do adolescente receberam novos contornos, a partir dos anos 1980, com a instalação no País do crime organizado e o tráfico de drogas, o qual forma exércitos a partir de, majoritariamente, pobres, quase sempre meninos negros e moradores de periferias. Já as redes de exploração sexual infantil atuam, principalmente, sobre as meninas com a mesma origem social.

“E aqui começo a caminhar para outro conceito: a invisibilidade. Crianças trabalhadoras de logradouros públicos de Piracicaba recebem atuação sistemática. Não é aceitável o trabalho infantil em nenhuma condição, especialmente nos espaços públicos. É ofensa pública. As autoridades não devem aceitar. O problema continua sendo o discurso higienista. Porém, devemos nos preocupar com as crianças invisíveis”, destaca Aguilar.

Para exemplificar, ele define o perfil do crime cometido no submundo. “Alguém que queira consumir meninas precisa ter dinheiro, não é em qualquer lugar, então precisa dos contatos certos e de uma série de proteções. Ou tem alguém que faz intermediação ou agenciadores seletos, com contatos seletos, dentre os ‘homens bons’ da localidade”, destaca. 

A invisibilidade social também aparece no trabalho doméstico. “Quase sempre está ligado a uma tradição associada a discurso assistencialista, ou seja, trazer a pessoa para ajudar, e quase sempre essas crianças e adolescentes são matriculadas no período noturno, quase sempre meninas de 13 anos, que estão sempre cansadas e abandonam os estudos pelo cansaço, porque ela trabalha do café da manhã até a louça do jantar.” 

Como historiador, Sidney Aguilar Filho disse que “conhece mais do passado do que do futuro”, por isso, evitou em apresentar soluções. “A minha intenção aqui é mais no sentido de empoderar vocês”, disse, a uma plateia de assistentes sociais ligadas à Smads (Secretaria Municipal de Assistencia e Desenvolvimento Social), organizadora do seminário, como forma de marcar o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, lembrado na mesma data.

A secretária municipal Eliete Nunes defendeu o foco dos trabalhos da Smads no que definiu como “piores formas de trabalho infantil’, ao citar o tráfico de drogas e exploração sexual de crianças e adolescentes. “Encomendamos uma pesquisa e com os dados que a gente têm e que ainda vão ser compilados, a gente tem uma série suspeita de que é uma situação grave no Município”, disse a titular da Smads.

Ela destacou ainda a necessidade de reforçar, cada vez mais, a rede municipal de proteção das crianças e adolescentes, incluindo representantes de setores além da assistência social, como a segurança pública.

Também participaram do seminário a primeira-dama Sandra Negri, presidente do Fundo Social de Solidariedade; Roger Nascimento Carneiro, presidente do CMDCA (Conselho Municipal em Defesa da Criança e do Adolescente); Erica Eugênio, supervisora escolar, representando a secretária municipal de Educação, Ângela Correa; e a coordenadora do Conselho Tutelar I, Zélia dos Reis.

O evento contou, ainda, com a participação das crianças do Case Jardim Oriente, apresentando a música O Mundo da Criança, e do Case Bosques do Lenheiro, interpretando Criança Não Trabalha.



Texto:  Erich Vallim Vicente - MTB 40.337
Imagens de TV:  TV Câmara
Edição de TV:  Comunicação


Legislativo

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