27 DE ABRIL DE 2021
Em live promovida pela vereadora Rai de Almeida, representantes da categoria apontaram caminhos para levar às profissionais conhecimento sobre direitos garantidos em lei.
Rai de Almeida participou, direto do plenário, do evento on-line "Direitos e Lutas das Trabalhadoras Domésticas"
"Vivemos hoje numa escravidão moderna", classifica Eliete Ferreira da Silva, coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Piracicaba, sobre a realidade da categoria, que, inversamente ao grande número de pessoas que emprega no Brasil, é historicamente pouco reconhecida. Como resultado, persistem casos de assédio e negação de direitos.
A reflexão sobre a atual situação do trabalho doméstico no país foi discutida em evento promovido pela vereadora Rai de Almeida (PT), na tarde desta terça-feira (27). Realizado de forma remota, a parlamentar, direto do plenário da Casa de Leis, conversou por videoconferência com três convidados, de diferentes localidades.
A live "Direitos e lutas das trabalhadoras domésticas" foi transmitida pela TV Câmara e pelas redes sociais como parte das atividades da "Semana da Trabalhadora e do Trabalhador Doméstico", da Câmara Municipal de Piracicaba, instituída pelo decreto legislativo 7/2013. Participaram da conversa, além de Eliete, o diretor do Sindoméstico Bahia e da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Francisco Xavier de Santana, e a defensora dos direitos trabalhistas Zenilda Ruiz da Silva Silveira, coordenadora jurídica do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município de São Paulo.
Rai, que foi trabalhadora doméstica entre a adolescência e o início da vida adulta, citou números para enfatizar o tamanho da categoria no país e sua prevalência entre estratos sociais mais discriminados. "São 6 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil, dos quais 92% são mulheres, sendo que, desse percentual, 70% são negras. É uma categoria predominantemente de mulheres e negras, que estão expostas a todo tipo de humilhação, desde dar a descarga pelos outros a sofrer violências e assédios sexual e moral", afirmou a vereadora.
Francisco projetou um número ainda maior de domésticas no Brasil, com base em metodologias anteriores. "Asseguro que há mais de 10 milhões de trabalhadoras no país. Números antigos apontam 500 mil na Bahia, 800 mil no Rio de Janeiro e mais de 1 milhão em São Paulo", disse o diretor da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas.
"Sabemos que qualquer família que ganha R$ 5 mil quer ter empregada. Qual é o rico que abre mão de ter uma trabalhadora doméstica, principalmente se ele pode sonegar os direitos? Sabemos que exploram, praticam trabalho escravo e não têm punição. Sociedade com esses traços, que não pune e passa a mão por cima, é fruto de uma cultura escravocrata e de sonegação", completou Francisco, 55, na profissão desde adolescente.
"Entrei aos 14 em uma das casas onde trabalhei, por mais de 20 anos. Era um casal com quatro filhos, uma casa imensa de classe média alta. Lavei muitas fraldas a mão; no início você reage a isso, porque não vive isso na sua família, mas depois naturaliza essa situação de exploração. Não dá conta da violência que está sendo praticada contra você e às vezes até colabora", continuou, para em seguida esmiuçar a psicologia perversa por trás do assédio praticado pelos empregadores.
"A sociedade usa os sentimentos para nos envolver. Trabalhando numa casa por muitos anos, perdemos a referência de família, de amigos. Naquele tempo a folga era uma vez ao mês. Dormi nesse trabalho por mais de 15 anos e perdi completamente a relação com amigos de infância e parentes, porque meu universo era o do trabalho doméstico. Eles usavam essa minha necessidade para me prender a eles e fazer abrir mão de direitos de que não nos damos conta", relatou.
Como a manipulação sustentada por um suposto vínculo afetivo faz as domésticas deixarem de reivindicar direitos de anos de serviços sem registro em carteira, o "caminho para minimizar esse sofrimento", disse Francisco, passa por "ter mecanismos para denunciar esses empregadores mesmo à revelia das trabalhadoras, para que sejam punidos em nome da categoria".
Francisco usou o exemplo de uma doméstica que lhe contou estar numa casa há três anos, ganhando R$ 600 mensais por uma jornada das 8h às 20h, "a semana toda". O argumento dos patrões é ouvido frequentemente pelas profissionais da categoria: "Está achando pouco? Pior é quem está lá fora", reproduziu Francisco.
"As companheiras não aceitam [denunciar os patrões], mas, quando abrem mão desse direito, não prejudicam só elas, mas toda a categoria, e dão segurança para a empregadora sobre a impunidade. Minha grande angústia é de que as companheiras não percebam esse valor social e financeiro que têm. Parece que ganhar salário mínimo é ganhar salário máximo. Culturalmente se convencionou que a trabalhadora doméstica não merece, que não é profissional, digna de receber remuneração decente. São os traços de um país que nasceu praticando escravidão e até hoje não admite largar esse vício", analisou o diretor da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas.
Eliete, que no momento se empenha em consolidar o sindicato municipal, quase extinto em 2018, trouxe um panorama da realidade de Piracicaba. "Estou na luta há mais de 30 anos e, para mim, é novo ver a situação em que as trabalhadoras chegam ao sindicato: totalmente sem informação nenhuma, numa insegurança muito grande para pedir ajuda. Muitas vão até uma altura, depois desistem por medo, porque os empregadores têm o hábito de ameaçar."
A coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Piracicaba afirmou que a entidade busca levar informações sobre os direitos da categoria por meio de rodas de conversa com as profissionais. "É uma pena que a sociedade não consiga ver a classe de trabalhadoras domésticas como uma profissão", lamentou.
"Fica cômodo contratar alguém para trabalhar em sua casa, combinar uma tarefa, ir jogando outras a mais para ela, chegar na hora do pagamento e nem um dinheiro a mais. É a escravidão moderna: hoje você entra numa casa para trabalhar, os filhos do patrão estudam fora, a patroa vem e diz que precisa fazer marmita para a filha levar. 'Eu te ajudo', e não ajuda de jeito nenhum. Faz uma fala bonita para você não fazer um questionamento com medo de perder o serviço, achando que é obrigação cuidar do filho, da mãe idosa", acrescentou Eliete.
Zenilda, também com envolvimento de mais de 30 anos com a categoria, defendeu a necessidade de andar com dois arcabouços legais "debaixo do braço": a convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que estabelece que os trabalhadores domésticos tenham os mesmos direitos dos demais trabalhadores, e a lei complementar 150/2015, que regulamentou a emenda constitucional 72/2013 e é aplicada no país ao empregado "que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de dois dias por semana".
A coordenadora jurídica do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município de São Paulo comentou as conquistas recentes da categoria, embora ainda tímidas. "A trabalhadora doméstica, quando não tinha direito nenhum, estava ótima para o patrão. Não tinha direito a ter filhos porque não tinha direito a ter licença-maternidade; podia ser mandada embora grávida e nada acontecia. Antes era muito bom ter uma trabalhadora doméstica escravizada, o tão famoso 'Ela é da família e, se é da família, não precisa receber salário'. As coisas passaram a mudar um pouquinho depois que começaram a olhar para a gente", disse, citando a "PEC das Domésticas", como é chamado o texto que deu origem à emenda constitucional 72/2013.
"Por que só podemos ter três meses de seguro-desemprego e outras categorias mais? Porque ninguém aceita, o empregador ainda é o senhorzinho, que não aceita que a trabalhadora doméstica tenha hora-extra, não concorda com isso, não quer pagar. A trabalhadora tem que ser informada de seus diretos porque ela é a única fiscal, não podemos entrar na casa do empregador. O Ministério Público do Trabalho só faz investigação quando há denúncia de cárcere privado, assédio ou algo assim", comentou Zenilda.
Rai apontou que o "medo instaurado" pelos patrões "traz um grande prejuízo do ponto de vista de organização" das domésticas, o que reforça a importância do sindicato como meio pelo qual "essas trabalhadoras terão sua voz ouvida e visibilidade para suas lutas". "Sabemos que existe empregador que cumpre suas obrigações, tem relação de solidariedade e companheirismo, e aqueles que se aproveitam, que são infelizmente a maioria", disse a vereadora.
"O trabalho doméstico é invisível. Embora seja aquele que é a base da reprodução de toda a riqueza da nossa nação, é o mais desvalorizado e o menos reconhecido em todos os sentidos. As trabalhadoras ainda são tidas como coisas, não como seres humanos", analisou Rai. "Estamos juntas nesse luta, somos resistência e venceremos com certeza. Que a exploração de uma classe por outra seja eliminada e tenhamos uma sociedade de iguais", concluiu a propositora do evento on-line realizado pela Câmara.