04 DE MAIO DE 2022
Audiência pública convocada pelo presidente da Câmara discutiu procedimentos que, na opinião de empreendedores, extrapolam o papel que cabe aos ofícios.
Críticas de construtoras e incorporadoras, endossadas por integrantes do governo municipal, à atuação dos cartórios de registro de imóveis de Piracicaba pautaram audiência pública realizada pela Câmara na tarde desta quarta-feira (4). Os agentes imobiliários veem excessos nas exigências feitas pelos ofícios, que, por seu lado, afirmam cumprir estritamente o que está na legislação.
Convocada pelo presidente do Legislativo, Gilmar Rotta (PP), a audiência pública trouxe ao plenário vereadores, secretários municipais, consultores de imóveis e empreendedores para discutir uma situação que, segundo Ricardo Kraide, presidente da Ascopi (Associação das Construtoras de Piracicaba), "vem há muito tempo" e foi agravada pela pandemia, com a falta de atendimento presencial.
O engenheiro, com 37 anos na área, cobrou um "alinhamento" entre cartórios e Prefeitura para que processos imobiliários deixem de ficar travados por questões tidas como menores, como a divergência na localização de um empreendimento —que, em muitos casos, é uma, de acordo com o cadastro mantido pelos ofícios, e outra totalmente diferente, segundo o informado pela administração municipal no carnê do IPTU.
Como consequência, a demora para desfazer tais entraves tem atrasado o lançamento de empreendimentos na cidade, provocando a desaceleração do setor de construção civil, geração menor de empregos e a perda da capacidade de Piracicaba em atrair novos investimentos. A análise do cenário foi trazida pelo secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo, José Luiz Guidotti Junior.
"A construção civil foi o segmento que mais cresceu na pandemia; o mercado imobiliário ficou muito aquecido em 2020 e 2021. Mas o Secovi mostra que Piracicaba tem o menor estoque de imóveis do Estado. O que isso quer dizer? Que não teve lançamento, que o mercado em Piracicaba ficou estagnado, porque temos um represamento de lançamentos imobiliários", disse Guidotti, com base em dados do sindicato patronal do setor imobiliário.
"Poderíamos estar fazendo frente a este momento de maior crise, mas Piracicaba ficou estagnada na construção civil porque grandes projetos acabam parados no cartório por problemas pequenos: 95% dos problemas não dizem respeito à Prefeitura, mas ao cartório, como questões de retificação, nome de rua, certidões", comentou. "O que escutamos dos incorporadores é que há um excesso de exigências que extrapolam o que o cartório deveria fazer, que é analisar o registro e se ater à sua condição notorial."
O secretário ilustrou sua fala com o dado de que, dos mais de 7 mil empregos formais gerados em Piracicaba em 2021, "somente 665 vieram da construção civil". "Quem perde é o cidadão que poderia estar trabalhando, mas não está, porque as empresas não estão conseguindo fazer seus lançamentos. O que está faltando é sensibilidade do cartório de enxergar a resposta que o mercado poderia estar dando e não dá, que é a geração de empregos."
Ricardo Kraide defendeu "abrir um canal" entre os cartórios de registro de imóveis e a Prefeitura a fim de "amenizar os problemas e agilizar a aprovação" de empreendimentos, já que eles, como explicou, têm "momento" para ser lançados e o atraso, uma vez ocorrendo, "muda totalmente o mercado". Segundo o engenheiro, a maioria dos embates decorre do conflito entre o que está na planta aprovada pela Prefeitura e o que "o cartório quer que se escreva nela".
Ele usou como exemplo o questionamento que os ofícios fazem a termos técnicos usados nos projetos, como "barrilete" em vez de "caixa d'água". "Não é o cartório quem deve analisar detalhes técnicos da planta, uma vez que o projeto está aprovado pela Prefeitura. O cartório quer mudar detalhes que a Prefeitura não exige", criticou.
O presidente da Ascovi apontou ainda outros três problemas comuns: a exigência, pelos ofícios, de documentos em formatos não disponibilizados por bancos; a cobrança, também pelos cartórios, para que sejam especificados os imóveis que receberam autorização da Prefeitura para serem demolidos; e as divergências na grafia de ruas ou na localização de um empreendimento. "O nome da rua está no carnê do IPTU; é problema da Prefeitura com o cartório, não é o empreendedor que vai corrigir um erro que está no carnê do IPTU."
Segundo Ricardo Kraide, a demora aumenta a cada devolutiva dos ofícios apontando aspectos que devem ser corrigidos pelas construtoras, o que acaba paralisando os processos por "seis meses, um ano". "O cartório manda as devolutivas, analisando uma parte do processo. Você as cumpre, mas depois recebe outras. Isso acontece 5, 6, 7 vezes, não vem tudo de uma vez só", comentou. "Essas exigências do cartório teriam de estar alinhadas com a Prefeitura, pois isso vai contando prazo e porque, toda vez que volta esse processo, todas as certidões que foram emitidas vencem, aí tem que emitir tudo de novo."
Representando o Secovi, o empresário Angelo Frias Neto defendeu "encontrar um meio-termo que satisfaça a necessidade econômica da cidade", já que, entre os reflexos da atual situação, está a "arrecadação de impostos que deixa de ser feita". "Os incorporadores e loteadores sempre esbarram nessas dificuldades. Fazemos empreendimentos no Estado todo e, aqui em Piracicaba, é complexo, há exigências demais. Todo esse processo segura o desenvolvimento nosso."
Luciano Celencio, que representou a Secretaria Municipal de Obras na audiência pública, disse que atualmente os servidores da pasta perdem "mais tempo revalidando certidões do que aprovando empreendimentos novos". Para o engenheiro, a solução passa pelo "respeito às atribuições", já que hoje acontece de "o cartório querer interpretar uma questão técnica". "As atribuições construtivas e técnicas cabem à Semob, e as jurídicas e documentais, ao cartório; se isso for respeitado, diminui muito a perda de tempo nossa."
Presidente da Emdhap (Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Piracicaba), Sérgio Maluf Chaim contou estar em tratativas com os oficiais dos dois cartórios de registro de imóveis da cidade para uma possível padronização de modelos que façam ambos os lados pouparem tempo diante do "retrabalho" gerado, por exemplo, pela necessidade de emitir novamente certidões vencidas.
"Temos muito que conversar ainda para que se gere menos retrabalho para cartórios e Prefeitura. Se tivermos esses modelos aprovados pelos cartórios, atendendo às reivindicações da Ascopi, conseguiremos com certeza reduzir bastante o tempo desse processo de aprovação e registro de incorporação, entre outras coisas, para que Piracicaba seja uma cidade amiga do empreendimento, amiga desses investimentos", afirmou.
Rafael Dornellas, presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil de Piracicaba, esclareceu que, embora as reclamações sejam conhecidas pelos próprios advogados que atuam na área, os registradores estão cumprindo a lei. "Eles não estão errados, não estão inventando. O registrador não age de vontade própria, mas de acordo com a lei."
Ele recomendou que empreendedores consultem advogados especialistas em direito imobiliário para dirimir questões por meio do instrumento chamado "dúvida registral", recurso jurídico que pode ser acionado pela pessoa que não se conforme com as exigências formuladas pelo cartório para o registro de um imóvel. "A OAB pode ajudar: estamos 100% disponíveis para dar curso de capacitação e ajudar vocês em dúvidas técnicas."
Juiz-corregedor do registro de imóveis em Piracicaba, Mauro Antonini, também juiz da 5ª Vara Cível, acolheu os apontamentos feitos durante a audiência pública e relatou que, a pedido do governo municipal, recentemente foi aberto "diálogo mais efetivo entre Prefeitura e cartórios para evitar essas divergências". "Esse primeiro contato já foi estabelecido, para que evitemos ao máximo as devoluções", disse.
Ainda sobre as notas devolutivas, Mauro Antonini informou que os cartórios de registro de imóveis "têm que cumprir estritamente a legislação de registros públicos, de 1973, e diversas leis posteriores". "Além delas, têm que seguir à risca a regulamentação dessas leis, feita por normas de corregedorias da Justiça dos Estados membros, e a normativa suplementar da Corregedoria Nacional de Justiça", completou.
"O oficial tem que, por dever, fazer uma qualificação desse título, em que ele identifica se há elementos que não atendem a essa regulamentação. A regra diz que devem ser evitadas ao máximo sucessivas notas devolutivas. Sobre esse aspecto, vou me reunir com os registradores e enfatizar a necessidade de uma análise mais minuciosa para evitar sucessivas devoluções", prometeu.
"Se vocês chegarem à conclusão de que a exigência é descabida, convém suscitar o 'procedimento de dúvida': o oficial vai mandar ao juiz-corregedor esse procedimento e aguardar prazo de 15 dias para o interessado se manifestar; depois, colhe-se parecer do Ministério Público e, em seguida, o juiz-corregedor confere sentença", aconselhou.
Uma vez consolidada, a decisão da corregedoria dá respaldo ao caso em questão e aos demais que a ele forem semelhantes no futuro, servindo de parâmetro para o que deve, ou não, continuar a ser exigido. "Os registradores ficam 'de mãos amarradas', porque têm que cumprir estritamente a legislação. Quando não há precedente em relação a algum tema, existe essa insegurança da parte deles, que pode ser resolvida a partir desse procedimento de dúvida", reiterou.
Mauro Antonini afirmou querer que o diálogo entre a administração municipal e os ofícios seja "permanente". "Acredito que a partir desta audiência pública conseguiremos vários progressos. É importante ter esse feedback: se há uma alegação de que aqui os empreendimentos estão mais represados do que em outras cidades, temos de apurar o motivo. Estou à disposição para conversar. Vamos tentar agilizar o atendimento nos cartórios de registro de Imóveis."
O presidente da Câmara propôs que, após a reunião de Mauro Antonini com os titulares dos cartórios, o juiz-corregedor promova nova conversa com a participação de Gilmar Rotta e de representantes da Ascopi, do Secovi, do Executivo e da OAB "para passar a todos qual encaminhamento foi dado para sabermos o que vai ser feito e tentarmos chegar a um denominador comum".
Também estiveram presentes na audiência pública os vereadores Acácio Godoy (PP), Pedro Kawai (PSDB) e Fabrício Polezi (Patriota). "Estamos falando de como podemos tornar nossas burocracias mais assertivas para que os trabalhos fluam, pois, quando uma obra atrasa, isso impacta na geração de emprego e no custo de quem vai adquirir no final aquela posição", observou Acácio Godoy. "Esse diálogo é importante para que a cidade ganhe, a arrecadação aumente e o munícipe seja beneficiado com emprego", comentou Polezi.
O procurador-geral do município, Guilherme Monaco de Mello, o secretário municipal de Finanças, Artur Costa Santos, e a presidente da OAB de Piracicaba, Fernanda Dal Picolo, também compareceram à audiência pública. Os oficiais de registro Everton Luiz Martins Rodrigues e Antonio Ranaldo Filho justificaram ausência.